sexta-feira, julho 03, 2015

À espera de Domingo: radiografias da submissão e outros contos


Não, a fila que se vê na foto que ilustra este que lêem não se formou para levantar dinheiro num multibanco e muito menos foi tirada na Grécia. Podia ter sido tirada em Espanha, onde também se espera mais de meio ano por uma colonoscopia, Mas também não. Foi tirada em Portugal, numa das clínicas privadas com acordo com o SNS onde, quando abrem as marcações, centenas de pessoas aparecem de véspera para terem direito a fazer o exame por até 48 euros. Em clínicas sem esse acordo, o exame pode custar mais de 200. Uma ressonância magnética, outro exame que está a ser fortemente racionado, custa mais de 400. E, custem 200, 400 ou até mais, estes exames existem para poupar as vidas e muito sofrimento àqueles que necessitam de fazê-los para rastrear doenças oncológicas potencialmente mortais em fases mais avançadas  em que os tratamentos custam dez, vinte, centenas de vezes mais do que 200 ou 400 euros. O Governo condena à morte e ao sofrimento um número indeterminado de portugueses quando decide poupar 200 ou 400 em testes complementares de diagnóstico para gastar milhões em tratamentos oncológicos. Para além de ser um crime sem nome, é também um péssimo negócio se a lógica seguida for a da mera aritmética.

Regressando à foto, há quem umas vezes se lembre de dizer que somos todos – Charlie – ou todos e todas, depende da liturgia da congregação, noutras que somos todos gregos, neste momento ser grego é o que está a dar, amanhã logo se vê, outros ainda que nem uma coisa nem a outra, pertencem a uma massa amorfa que nunca diz nada. São diariamente convocadas acções que pretendem expressar solidariedade aos gregos. E muito bem, eles merecem-na, souberam organizar-se colectivamente, conseguiram pôr-se de pé e enfrentar o invasor que se apoderou do país. Mas nada disto tem significado algum se nos esquecermos que somos portugueses, se a solidariedade que manifestarmos aos outros for a solidariedade que não nos oferecemos a nós próprios e, sobretudo, se não percebermos que é nessa solidariedade que praticamos pouco que está a explicação de como uma minoria reduzida mas coesa tem conseguido subjugar uma maioria cuja vontade se dilui no individualismo de cada um.

Foi esse individualismo inconsciente e ignorante, que aquela foto ali em cima retrata tão bem, que nada fez quando o dinheiro dos nossos impostos começou a ser desviado da Saúde que era suposto financiar para pagar juros multiplicados por uma regra artificial, sem par em nenhum outro banco central, que impede o BCE de ceder liquidez directamente aos estados e, dessa forma, nos faz reféns de um sector financeiro que rentabiliza as nossas vidas e o nosso sofrimento especulando no mercado com a maior das naturalidades. Foi esse individualismo que se encolheu ao desinvestimento que foi desmantelando o SNS ao mesmo tempo que o foi concessionando a clínicas privadas onde os utentes que um dia fomos hoje fazemos filas intermináveis de clientes de um negócio tornado lucrativo pelos nossos impostos: “eu hoje não estou doente, sou um tipo saudável e até tenho que chegue para pagar um seguro de saúde, logo, não sou eu que tenho que me preocupar com o SNS que é de todos. "E eu que não tenho, que sozinho nada posso, resta-me sujeitar-me e obedecer."

Na Grécia, o cenário é o mesmo. “Eu hoje não posso levantar mais do que 60 euros no multibanco, quero lá saber de quem tem multibanco mas não tem 60 euros, de quem não tem nem multibanco nem 60 euros, de quem tem multibanco mas deixará de ter 60 euros caso vença o “sim” no referendo grego do próximo Domingo”. Foi sobre este individualismo, habitualmente permeável a provocações que põem trabalhadores contra trabalhadores e velhos contra novos, que a atrás referida minoria coesa e organizada resolveu trabalhar fechando a torneira à Grécia na Sexta-feira passada. Se aqueles que menos têm e aqueles que mais têm a perder cederem à chantagem ou ficarem em casa no próximo Domingo, e todos sabemos como os abstencionistas são todos iguais e como os abstencionismos servem sempre os mais fortes, o directório europeu conseguirá não apenas derrubar um Governo que tudo fez para defendê-los e ao seu país e colocar um qualquer bonequinho do multibanco no seu lugar como ainda estancar o efeito de contágio da – para eles – praga democrática a outros países à mercê da sua voracidade à prova de escrúpulos. Que vença o "não", muito pelos gregos mas sobretudo por todos nós, portugueses e não só, individualistas e desorganizados, logo, obedientes, que ainda não somos gregos por  mero tacticismo e conveniência. Mas já faltou mais.


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